As narrativas mobilizadas na internet durante as eleições

As narrativas mobilizadas na internet durante as eleições

Feminilidades em disputa no TikTok

Em uma disputa eleitoral em que votos de mulheres foram decisivos, marcada por violência política e ataques misóginos a jornalistas do gênero feminino, não surpreende que mulheres em torno dos candidatos à presidência – em especial suas esposas – tomem centralidade; no TikTok isso não foi diferente.

Não é novidade que Bolsonaro mobilizou a imagem de Michelle para reduzir a rejeição feminina e garantir votos de evangélicos. Foram recorrentes os vídeos que transmitiam tanto falas de Michelle em eventos religiosos, quanto colagens de fotos com músicas de fundo destinadas a gerar emoção (como Unstoppable, de Sia), mostrando-a usando a linguagem de sinais, participando em atividades de caridade, etc. A apresentação de Michelle conforme aspectos convencionalmente femininos, articulada a eventos, como a declaração de Bolsonaro no 7 de setembro referindo-se a ela como “princesa”, e a ida do casal aos ritos funerários da Rainha Elizabeth II, geraram inúmeros vídeos com colagens de fotos de Michelle elogiando sua elegância. Nos comentários, pessoas a comparavam à Lady Diana, a nomeavam “a princesa do Brasil” e “uma primeira DAMA de verdade”. Tudo isso sinaliza a referência a certos papéis tradicionais de gênero e classe adequados à companheira do presidente, o que envolve recato, gestos e vestimentas que pertenceriam a uma hierarquia social e demarcariam sua distinção.

O engajamento de Janja Lula da Silva, esposa do candidato petista, foi também intenso, mas obedeceu a estratégias levemente distintas. Janja tem perfil próprio no TikTok, ao contrário de Michelle, portanto, administra mais diretamente a própria imagem na plataforma. Nos poucos vídeos disponíveis, o enfoque estava em comícios e passeatas, mostrando-a com o microfone na mão, usando com recorrência roupas lidas socialmente como mais comuns, como calças jeans e camisetas. Janja também era vista com frequência se dirigindo a mulheres para falar sobre violência de gênero, dívida de famílias encabeçadas por mulheres e ativismo feminista.

Em vídeo do Poder360, em resposta a declarações de Bolsonaro sobre “os homens solteiros deverem procurar uma mulher, uma princesa para se casarem”, Janja afirmou no que parece um comício: “eu queria pedir pra vocês, assim, acenderem as luzes dos seus celulares, porque eu queria ver se tem alguma princesa por aqui. Ou por aqui. Não tem, sabe por quê? Porque aqui só tem mulher de luta! São essas mulheres que vão ganhar essa eleição no primeiro turno pra Luis Inácio Lula da Silva!”

As reações a suas participações distintas geraram, formas diversas de agressão baseada em gênero - de maneiras muito próprias, referentes à dinâmica da plataforma, mas conectados a manifestações misóginas mais amplas. Um caso emblemático  foi o do  vídeo com a declaração de Janja: seguindo prática comum no TikTok, ele foi fartamente editado e compartilhado de modo a tornar sua declaração risível. O perfil Bolsopatriota, por exemplo, manteve a pergunta dela “quero ver se há alguma princesa por aqui”, para então intercalar vídeo com uma foto de Benedita da Silva e Gleisi Hoffman, inserindo, nesse momento, som de gritos de susto. Então, retorna para o trecho da fala de Janja, em que diz “não tem!” - sendo logo cortado para um vídeo breve de Bolsonaro rindo. A mensagem é evidente: a de que mulheres apoiadoras de Lula não só não são princesas, mas são feias, assustadoras. Dentre os mais de 6.250 comentários, mulheres repetem “nós princesas estamos com Bolsonaro”, “princesa é a primeira-dama Michelle” e “as princesas são de direita”.

MonitorA 2020: Benedita da Silva e as articulações entre raça e gênero

Na edição de 2020 do MonitorA, acompanhamos os perfis da então candidata à prefeita do Rio de Janeiro pelo PT (Partido dos Trabalhadores), Benedita da Silva. Em nosso monitoramento, identificamos que Benedita foi alvo de tuítes que apontavam para sua aparência física, tanto no que diz respeito à cor da sua pele e aos seus traços físicos, quanto à sua beleza. Seu corpo se tornou foco do debate, abrindo pouco espaço para que sua atuação política fosse comentada. Nos tuítes ofensivos dirigidos a ela no pleito municipal de 2020, a candidata era recorrentemente deslegitimada enquanto figura política por ser uma mulher negra.

Ataques a mulheres de esquerda, feministas e lésbicas a partir de comentários sobre sua aparência não é novidade; no entanto, tal ofensa se atualiza, se reproduz rapidamente e é apropriada de formas particulares no TikTok, a partir de atribuição de sons, colagens de imagens distorcidas e edição de vídeos. Da mesma forma, dinâmicas de uso da plataforma são reajustadas na reprodução da violência, favorecendo a criação de “filtros de bolha”, termo cunhado por Eli Pariser para falar do isolamento intelectual que pode resultar do excesso de personalização de algoritmos. Se em outras redes sociais como o Twitter, ofensas feitas a candidatas e personalidades políticas em seus posts e perfis são recorrentes, o funcionamento do algoritmo do TikTok tende ao contrário - apresentar conteúdo a pessoas que concordam com ele em sua área For You, não sendo tão afetado por empreitadas de condução de temas e pessoas ao trending topic como no Twitter. Isso se nota na seção de comentários de vídeos - à esquerda e à direita no espectro político, a imensa maioria é de declarações de apoio e elogio ao conteúdo e aos sujeitos representados. Discordâncias e ofensas são mais escassas, e se limitam a declarações de voto (em postagens de esquerda, pessoas comentando “Fechado com Bolsonaro” e “Mito 2022”; em postagens de direita, pessoas comentando “Lula 13”). Uma das exceções tem envolvido justo Janja - em seus vídeos, não importa o conteúdo -, seja convidando pessoas a cantarem com ela o jingle de Lula, seja em colagens de fotos com seu marido - há nos comentários mensagens de eleitores bolsonaristas declarando “sou mais Michelle”, “quem é janja nunca será princesa”, “kkkk coitada” “kkkk ela quer ser Michelle e nunca será”.

Mas não só Janja é alvo de ataques carregados de pressupostos de gênero. Vídeos de crítica a Michelle Bolsonaro se multiplicaram na rede durante as eleições, e embora alguns tivessem o intuito de demonstrar contradições entre suas declarações de superioridade moral/pertencimento cristão e práticas de intolerância religiosa e denúncias de cometimento de corrupção, outros têm conteúdo voltado à ridicularização. Em um dos perfis, por exemplo, é feita uma comparação entre Janja e Michelle (tendo como imagem de fundo a contraposição de uma Janja sorridente com Michelle fazendo uma expressão de suspeição”, afirmando que “uma é fanática religiosa, semi-alfabetizada, com 2º grau, ensino médio muito ruinzinho, analfabeta política. Conta-se que ela foi namorada de políticos antes de se casar com o atual mandatário da república, dizem que ela já foi inclusive presa, têm uma avó e um tio envolvidos com tráfico, e o pior de tudo é isso que eu falei no primeiro lugar: ela é uma fanática religiosa cega, provavelmente esquizofrênica que acredita que tá falando com o espírito santo enquanto rodopia e enrola a língua. Já a outra é socióloga, (...) tem pós-graduação em história pela UFRJ e possui MBA em políticas públicas.” A ofensa ao pertencimento religioso, as suspeições em torno de sua sexualidade e a psicofobia se articulam a um elitismo associado à escolaridade e capital intelectual.

Não se observou nos padrões de uso da plataforma ataques abertamente violentos a candidatas ou demais mulheres que alcançaram protagonismo ao longo do período eleitoral, como jornalistas e comentaristas políticas. No entanto, dinâmicas de humilhação atravessadas por pressupostos de gênero comunicadas através da comicidade foram constantes. Exemplos  são registros do debate ao governo do Piauí, ocorrido em 16 de agosto, dando destaque à participação de Lourdes Melo (PCO). Inicialmente, viralizou na plataforma o trecho em que o apresentador do debate interrompe a fala de Melo e pede que ela dirija a pergunta a algum candidato. Ela, indignada, replica: “Você quer me calar? Você quer proteger os candidatos?” O vídeo se vale das ferramentas usuais de atribuição de humor, como enfoque e pausa em expressões de confusão e uso de emojis em legendas. Em seguida, diversos trechos de falas da candidata do PCO também foram compartilhados, com emprego ainda mais intenso de ferramentas de edição de vídeo. Em uma publicação de “melhores momentos” de sua participação no debate, inseriu-se música instrumental de fundo similar a de filmes de comédia. Ademais, efeitos de som são adicionados para zombar de sua fala. Ao dizer que “como servidora pública, viveu sob a chibata do governador”, ouve-se o som de um chicote, e ao falar sobre o autoritarismo e desrespeito do chefe do Executivo para com funcionários do Poder Público, emprega-se a aceleração do vídeo, produzindo em espectadores a sensação de digressão e devaneio na fala de Melo. Enquanto ela fala sobre temas como a brutalidade policial que tem como alvo uma população socioeconomicamente vulnerável, a câmera dá enfoque a expressões de riso entre os demais candidatos participantes do debate.

Ao apresentá-la como confusa, alguém que se comporta de forma combativa sem motivo e deslocada da realidade, tais vídeos tornam não só a candidata risível, mas revestem o que ela diz de ridículo. Deste modo, afirmações dignas de ocupar um debate político, como o tratamento de servidores públicos por chefes do Poder Executivo, alinhamento de candidatos a interesses de elite e apoio a pautas bolsonaristas são desconsiderados, porque sua imagem tornada objeto de escárnio contamina o conteúdo da fala. Isso se evidencia nos comentários, todos zombando dela, em referência a sua estabilidade mental, sua idade e seu letramento: “convidar gente desse nível dá nisso”, “como que a família dessa senhora deixa ela se candidatar?” e “se fizer uma prova nível de 5ª série, não atinge 50% de aproveitamento.”

O revestimento de comicidade para expressar e escamotear humilhação e violência também se dá em vídeos resultantes de pesquisa pelo nome da candidata petista a deputada federal pelo Rio Grande do Sul Maria do Rosário. Conteúdo produzido sobre ela se dava principalmente a partir de sua vinculação a desequilíbrio mental e a comportamentos injustificados. Em um dos primeiros resultados gerados pela busca por seu nome, a tela se divide em uma montagem que insere seu rosto num corpo envolvido em uma camisa de força, enquanto a outra metade transmite vídeo em que supostamente ela passaria, rapidamente, por um espaço na Câmara dos Deputados esbarrando em homens que estão em volta. Na gravação caseira, recortada, cujo contexto não conhecemos, ouve-se um deles dizendo “ela é doida, tá agredindo a gente”, e a cena do encontrão é repetida em câmera lenta. Os comentários reiteram o questionamento a sua sanidade: “essa aí não bate bem”, “essa mulher é completamente desequilibrada”, e “é mais fácil Pablo Vittar engravidar da [sic] Thammy Gretchen do que Maria do Rosário passar num psicotécnico.”

Em outro resultado encontrado, transmite-se o trecho em que o então deputado Jair Bolsonaro ameaça lhe dar um tapa e diz que “jamais iria estuprar você porque você não merece”. Bolsonaro chega a empurrá-la e Maria do Rosário diz “mas o que é isso?”. A deputada repete a frase algumas vezes, mas é notável que a edição de vídeo inseriu o áudio dessa expressão ao longo da duração da publicação, de modo a produzir a percepção de que Rosário entrou em uma espiral de repetição descontrolada. Nos comentários, muitos usuários riem: “dizem que ela está falando ‘o que é isso’ até hj kkkkkk”, “ela não tinha argumento e ficou MAS UKI É ISSU”, “furou o disco kkkk”, “a patada foi tão forte que deu bug nela kkkkk”. Há também dizeres preocupantes como “foi aí que ele me ganhou”, “nem conhecia ele antes, e nessa época que virei fã”, “foi aí que ganhou meu primeiro voto”, “quem procura acha”, etc. A sugestão de desequilíbrio mental e de condutas inexplicáveis, como ataques imotivados a homens que justificariam uma “reação de defesa” deles, é evidente nesses vídeos. Assim como com Lourdes Melo, a ridicularização em torno dela contamina o que ela tem a dizer; aqui a atribuição da pecha de louca agressiva a Maria do Rosário trivializa a violência cometida contra ela e deslegitima a sua indignação. Surpreende o modo como a aba de comentários a publicações não tem a mesma hostilidade notada em plataformas como Instagram e Twitter. Em vídeos protagonizados por mulheres em conteúdo referente a eleições, o teor dos comentários é massivamente elogioso. De um modo geral, as manifestações de usuários em vídeos são de concordância e congratulação aos participantes dos vídeos. Lemos com frequência, à esquerda e à direita, “falou tudo!”, “faço das suas palavras as minhas”, “só vi verdades”, etc. Sugere-se, assim, o já apontado por Letícia Cesarino (2022) em referência a Chun (2016), acerca da dinâmica de confirmação proporcionada pelo funcionamento de algoritmos de plataformas como o TikTok: segmentações são homofílicas, conectando iguais com iguais, em que

algoritmos entregam aos usuários mundos personalizados que confirmam seus enquadramentos individuais – em termos cibernéticos, que contêm um excesso de feedback positivo. Como resultado, os usuários sentem-se plenamente legitimados em suas opiniões e visões (...). (2022:105)

Ademais, o padrão da dinâmica de engajamento nessa aba é pouco complexo – os comentários costumam ter a mesma forma e se repetir entre usuários: “Bolsonaro 22”, “Lula presidente”, “Bolsonaro no primeiro turno”, “Mitooooo”, “Luladrão”, com uso farto de emojis, são maioria. Elaborações de ideias, mesmo que se prolonguem um pouco mais, não costumam alcançar mais do que uma frase. Também são poucas as interações entre usuários na seção de comentários, sugerindo que não há a apropriação desta como campo dialógico.

Alguns modelos de comentário, no entanto, se destacam. Um deles se refere, seguindo os padrões de uso da plataforma já salientados, ao modo como o humor é mobilizado como zombaria e ataque. Os níveis de seu teor variam consideravelmente; então em publicações de meninas jovens fazendo dança ao som do jingle do Bolsonaro, podemos ver escritos como “amei, nota 13”, e de meninas mostrando que votam em Lula podemos ver escritos como “curti 22 vezes”. Mas outros moldes replicam a dinâmica violenta da produção de vídeos.

Uma dessas modalidades se refere a comentários de tipo “teu fã”, particularmente frequentes em vídeos que de algum modo criticam o então candidato a deputado federal Nikolas Ferreira. Tanto em publicações de Duda Salabert (mulher trans que também foi candidata a deputada federal por Minas Gerais) quanto do influencer Felipe Neto, que apontam direta ou indiretamente condutas problemáticas do candidato do PL (como o de envolvimento com acusados de corrupção e de disseminação de desinformação), predominam comentários que marcam Ferreira na publicação e inscrevem “teu fã, Nikolas” “te ama muito kkkkk”, “e esse amor incubado kkkkk corre aqui Nikolas”. O uso de pronomes masculinos para se referir a Duda é frequente, em desrespeito a sua identidade de gênero feminina – fator que contribui para a sugestão geral do comentário: de que as menções críticas são feitas por obsessão pautada em um apaixonamento recalcado, homossexual. É uma forma de invalidação da crítica e de ridicularização homofóbica dos autores do conteúdo.