Guerras religiosas: como a religião pautou as redes de Janja e Michelle

Guerras religiosas: como a religião pautou as redes de Janja e Michelle

Na disputa presidencial, as campanhas petista e bolsonarista se esforçaram para conquistar o voto de mulheres, que, de acordo com Datafolha, era a parcela do eleitorado mais indecisa sobre o voto. Como parte da estratégia de conquistar o eleitorado feminino — e no caso da campanha bolsonarista, especificamente, feminino e evangélico —, Janja e Michelle Bolsonaro foram parte importante na campanha dos maridos. A atuação política de ambas, contudo, não é novidade e não começou em 2022. Janja é militante e filiada ao Partido dos Trabalhadores desde 1983, e foi parte central da organização da vigília em frente à superintendência da PF em Curitiba enquanto Lula ficou preso. Michelle, por sua vez, atuou diretamente durante o mandato do marido (2019 – 2022), na coordenação de projetos do Ministério da Cidadania e em programas do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Durante o período eleitoral, Janja participou na organização da agenda de Lula e em estratégias de divulgação de mídia. Já na campanha bolsonarista, Michelle atuou para angariar a simpatia do eleitorado evangélico. A esposa de Bolsonaro, também evangélica, explorou de forma acentuada sua identidade religiosa, com mudanças estéticas e uso de discursos típicos do repertório religioso pentecostal, com foco em uma suposta luta do bem contra o mal que seria travada durante as eleições.

Os ataques e insultos direcionados a Janja e Michelle nas redes sociais foram marcados pela misoginia, pela religião, por narrativas que disputavam noções de moralidade e pela intolerância religiosa.

Na semana que antecedeu e na semana seguinte ao primeiro turno das eleições (entre os dias  26/09 e 09/10), monitoramos os perfis no Twitter e Instagram de Janja e o perfil no Instagram de Michelle. Queríamos entender quais eram os tipos de ataques e insultos direcionados às esposas dos candidatos à presidência e quais narrativas eram construídas ao redor dessas duas figuras. Da mesma forma que o debate religioso foi central nas campanhas eleitorais para ambas candidaturas, ao analisarmos as narrativas hostis contra as duas mulheres nas redes, também nos deparamos com ataques e ofensas com fundamento religioso.

Guerra espiritual na disputa político eleitoral
A sentença de que as eleições de 2022 seriam “a luta do bem contra o mal” foi repetida exaustivamente por Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro. A ideia de guerra cultural mobilizada pelo ex-presidente e pela ex-primeira-dama adotam o repertório neopentecostal que compreende um “dualismo hierárquico cristão, isto é, do eterno conflito entre Deus e diabo, presente no cerne da doutrina cristã” (MARIANO, 2003, p. 25). Na concepção neopentecostal, o bem seria compreendido como a prosperidade material, a saúde física, a felicidade pessoal e familiar - sendo que a concepção de família, neste caso, remete a um modelo específico de família (pai, mãe e filhos”, compreendida pelo ativismo religioso evangélico como a família natural (TEIXEIRA & BARBOSA, 2022, p. 94). O mal, por outro lado, corresponde aos mais diversos problemas que afetam as pessoas, desde doenças e baixos salários à depressão, separação amorosa, solidão ou brigas familiares. Assim, na concepção neopentecostal de “guerra espiritual”, o bem e o mal não se limitam à guerra entre Deus e o diabo. Trata-se de uma guerra terrena, na qual todas as pessoas participam ativamente. (MARIANO, 2003). Sendo uma guerra terrena, que necessita do engajamento das pessoas para combater o mal, as eleições de 2022 foram mobilizadas, pelo ativismo evangélico, como um momento de guerra espiritual.

Nesse sentido, a campanha bolsonarista, que tinha um forte apoio do eleitorado evangélico, adotou um repertório religioso em suas estratégias eleitorais: tanto para fortalecer a sua campanha, como para atacar o seu adversário. Do outro lado, Lula, que precisava angariar o apoio de parcela do eleitorado neopentecostal, também mobilizou a ideia do demônio e da religiosidade em sua campanha.

Nos discursos de “luta do bem contra o mal” e “guerra espiritual” que entoaram o debate político e eleitoral de 2022, as formas como insultos e os ataques de cunho religioso eram direcionadas a Janja e a Michelle operavam de forma bastante distinta. De um lado, nos comentários direcionados à Michelle, as narrativas mobilizadas giravam em torno de uma “falsa cristã”, de alguém que “usa o nome de Deus em vão” e de uma “má evangélica”; no caso de Janja, as narrativas giravam em torno, principalmente, de intolerância religiosa contra religiões de matriz-africana.

No Instagram de Michelle, nas duas semanas analisadas, identificamos, ao menos, 273 comentários com conteúdo ofensivo e/ou insultos. A maior parte dos comentários com termos ofensivos faziam referência a supostos casos de corrupção, referindo-se à ex-primeira-dama com termos pejorativos como “Micheque” ou “Michelão”. Em alguns casos, as acusações de corrupção direcionadas à Michelle são acompanhadas de comentários hostis que afirmam que a ex-primeira-dama não é uma cristã verdadeira e estaria usando o nome de Deus em vão:

Não tem vergonha de usar o nome de Deus em vão , primeiro aprende oque é ser um cristão pra dpois querer jejuar !

@__marcia_cabral_ ódio do bem e invenção de Cristão sem letramento . Deixa tirar o sigilo em 2 meses da Micheque 😂😂😂😂😂😂😂😂😂😂

@michellebolsonaro usando o santo nome do Senhor em vão né micheque?

Em outros, as narrativas em torno de uma falsa cristandade de Michelle assume contornos mais agressivos, em que afirmam que ela irá “arder no fogo do inferno”, que Deus teria vergonha e que “já teria matado” pessoas como Michelle:

Deus deve ter vergonha de todos vcs que fica usando o nome dele em vao se deus tivesse aqui na terra vcs ja teria matado ele pq vcs são cruéis pq no deus que eu acredito ele é paz é amor

Brasileiro nem comida tem ja estão de jejun a 4 anos vc e uma brincalhona usando isso se loco ea primeira que vai arder no mármore do inferno 😂😂😂😂

A forma de expressão de sua religiosidade também é alvo de ofensas no Instagram de Michelle. Expressões como “fanática maluca” são usadas para atingir a ex-primeira-dama:

E se fosse querida @michellebolsonaro ia p inferno ? Vc é uma fanática maluca... acha q só sua fé é divina ... estragar votos ( se não fosse vc ele teria + votos

As ações atribuídas ao seu marido, Jair Bolsonaro, impactaram diretamente as ofensas e a forma como Michelle era ofendida no Instagram. Os vídeos que circularam durante a campanha eleitoral, no segundo turno, em que Bolsonaro estava em uma loja da maçonaria, repercutiram, também, nas ofensas dirigidas à Michelle. Ainda que os vídeos não tivessem uma relação direta com a ex-primeira-dama, nos comentários do Instagram, a presença de Bolsonaro na loja da maçonaria levou usuários(as) a chamá-la de “herege maldita” e “demônio puro”.

Vai lá na maçonaria sambar. Sua herege maldita.

Agora sabemos porque @michellebolsonaro rodou igual a pomba gira no terreiro é demônio puro #bolsonaria

No caso de Janja, nas duas semanas analisadas, identificamos ao menos 799 comentários com ataques e/ou com insultos, no Instagram e no Twitter da primeira dama. O número de ofensas dirigidas à Janja é significativamente maior do que aquele identificado nas redes de Michelle Bolsonaro. Essa diferença se dá por duas razões: (i) Michelle não tem um perfil no Twitter, plataforma concentra mais postagens com conteúdo ofensivo, em comparação às demais redes sociais analisadas; e (ii) no Instagram, rede social na qual ambas têm um perfil, Janja recebe, proporcionalmente, mais ofensas do que Michelle.

Nas redes sociais de Janja, misoginia e intolerância religiosa - muitas vezes de forma combinada -, foram as principais categorias de ataques direcionados à primeira-dama. As narrativas misóginas contra Janja são principalmente mobilizadas no Instagram, e os comentários de intolerância religiosa predominam no Twitter. Após o fim do primeiro turno, notamos um aumento de quase 8 vezes no número de ofensas de teor religioso direcionadas à atual primeira-dama. Dentre esses comentários e tweets ofensivos, o termo mais utilizado para ofender Janja foi “macumbeira”.

As ofensas de ordem religiosa direcionadas à Janja giravam em torno de dois principais eixos: de um lado, comentários de racismo religioso contra religiões de matriz-africana; de outro, acusações de que Janja seria uma “falsa cristã” e que estaria recorrendo a símbolos cristãos para fins eleitorais.

Em resposta às imagens e postagens de Janja no Círio de Nazaré, em Belém, comentários hostis no Twitter afirmam que a primeira-dama estava “fingindo ser católica” e usando imagens e santos cristãos para angariar votos:

@JanjaLula @kbene Mas quando vc tem o seu, você sabe, e você se volta contra ele, só pra pedir voto, fingindo ser católica, ele não vai te cobrar??? vai gastar uma a em cachaça e galinha viva pro despacho hein dona janta…

@JanjaLula @pretaderodinhas tá todo mundo virando crente desde criancinha 🥸

@JanjaLula A vagabundagem buscando voto com o nome dos Santos…

@JanjaLula Agora apela até para o santo. Uma vela para o d.... e outra para Deus. Que nojo.

Em muitos casos, de modo ofensivo, usuários(as) do Twitter e do Instagram afirmavam que Janja estava errada em participar das celebrações do Círio de Nazaré, porque ela seria “macumbeira”. Esses comentários direcionados à Janja partem de uma ideia de que existe uma incompatibilidade intrínseca entre a celebração de ritos católicos e cristãos, com a celebração de ritos de religiões de matriz africana, reduzindo e negando quaisquer sincretismos religiosos.

@JanjaLula Tu está indo no lugar errado.... O seu lUgar é no TERREIRAO ,DANÇANDO E RODANDO NA SUA MACUMBA!!, #FORAPT

#ForaLulaLadrao ,criminoso, Dissimulado, falso, ditador, comunista.

@JanjaLula Um dia que girar feito pomba gira. 💃No outro ao lado de S Francisco de Assis. Ou uma coisa ou outra. 🤦🏽‍♀️😜

A maior parte das ofensas com teor religioso direcionados à Janja concentram-se em dirigir-se a ela como “macumbeira” e como “pombagira”, chegando a acusá-la de ser “satanista”:

@JanjaLula Aí não tem bumboo pra você macumbeira https://t.co/H17SmPfUpx

@JanjaLula Satanista macumbeira

@JanjaLula Vai lá pomba gira

"Macumbeira @JanjaLula a cara dela é de pombagira do mau.....Coração do ódio, vingança, arrumou a pessoa correta @LulaOficial os combinam pq respiram ódio ao povo. SÓ QUEREM ROUBAR NOSSO DINHEIRO! FORAPT https://t.co/Yi9nF0xc5y"

Cruzando intolerância religiosa e misoginia, as ofensas religiosas com teor sexual aparecem com frequência no Twitter, contra a primeira dama, chamando-a de “macumbeira vagabunda” e usando a figura da Pombagira como uma ofensa de gênero:

@JanjaLula @kbene A pomba gira pode não gostar. Ela é ciumenta https://t.co/UhHAzSbaEY

@JanjaLula Macumbeira vagabunda

@falom3rmo @marinasvianna @44cryptom @cafecomferri Lula foi no hospital comprar viagra pra meter na macumbeira da @JanjaLula . Próximo assunto

A Pombagira é uma entidade das religiões de matriz africana, que segundo a mitologia bantu é o orixá dos caminhos, encruzilhadas, bifurcações e da comunicação. Pombagira representa, assim, o espírito feminino de Exu (SILVA, 2007). Para o candomblé e umbanda, a Pombagira é uma guardiã e protetora que promove características como a virilidade, equilíbrio, sensualidade (FREIRE et al., 2019). Para algumas comunidades cristãs, por outro lado, a Pombagira é uma representação do mal (FREIRE et al., 2009), vinculada a um desregramento moral, à histeria, à desordem dos comportamentos e à vulgaridade (SIMAS; RUFINO, 2018).

O uso da figura da Pombagira para ofender e atacar mulheres parte de uma concepção de que a mulher ofendida teria uma sexualidade desenfreada, desmedida, de que seria uma mulher imoral. Essa associação à imoralidade e  à vulgaridade pode ser compreendida como “um traço do racismo epistêmico imbricado com as ideologias sexistas/machistas que nos condicionam” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 90).

Vale notar que as políticas do Twitter e do Instagram proíbem expressamente discursos de ódio com base em religião. A política de conduta de propagação de ódio do Twitter, por exemplo, estabelece que não é permitido promover violência, atacar diretamente ou ameaçar outras pessoas com base, entre outras coisas, em religião. A Meta, controladora do Facebook e Instagram, também inclui “religião” como categoria protegida em sua política sobre Discurso de Ódio, definindo ataque como “discursos violentos ou desumanizantes, estereótipos prejudiciais, declarações de inferioridade, expressões de desprezo, repulsa ou rejeição, xingamentos e incitações à exclusão ou segregação”, e proibindo “o uso de estereótipos prejudiciais, que definimos como comparações desumanizantes historicamente usadas para atacar, intimidar ou excluir grupos específicos”.