Raça e masculinidades: os perfis de Kim Kataguiri e Fernando Holiday

Raça e masculinidades: os perfis de Kim Kataguiri e Fernando Holiday

A violência política não é restrita a mulheres que atuam politicamente. Desde 2020, observamos que homens de grupos historicamente marginalizados — como idosos, GBT+ e não-brancos —, seus corpos, moralidades e aspectos pessoais de suas vidas também tornam-se alvo de violência política.

Para compreender as narrativas violentas e ofensivas na internet em torno de homens que atuam na política, monitoramos os perfis no YouTube, Facebook, Instagram e Twitter de oito candidatos a deputado federal do Estado de São Paulo. A análise, para além de reforçar os achados do MonitorA 2020, no que tange às especificidades das abordagens e dos discursos trazidos nos ataques direcionados aos homens, demonstra a relevância de uma análise interseccional, pois, diferentemente das mulheres, os homens aqui analisados não foram atacados por serem homens, e sim, por pertencerem a outros grupos socialmente marginalizados. É na articulação entre marcadores sociais da diferença para além da masculinidade que se manifesta a violência.

Nesse sentido, nesta seção analisaremos as narrativas em torno de Kim Kataguiri e Fernando Holiday, que foram alvos de narrativas ofensivas raciais em seus perfis. Ainda que compreendamos que o ato de ser homem não possa ser limitado a uma experiência única, pois a própria masculinidade é operacionalizada de formas diversas, as características que afastam os candidatos de uma masculinidade hegemônica, isto é, uma masculinidade que se manifesta como regra, (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013), parecem pautar os ataques.

No caso de Kim Kataguiri, sua descendência japonesa, que o torna membro da comunidade amarela, foi reiteradamente trazida de forma pejorativa. A utilização do termo “japa” individualmente ou seguido de um segundo adjetivo, como em “japa feio”, “japa burro” e “japa mau-caráter” se destaca entre os ataques contra o candidato. Ainda foi observada a utilização de outros termos depreciativos, como “China” e “cata koquinho”.

“@KimKataguiri Passando vergonha China? Vai estudar pra entender vai” (Twitter)

“@augustodeAB @KimKataguiri A única coisa que este japa feio faz é passar vergonha na vida! Ahahahahaha https://t.co/G6BsbZLlg1” (Twitter)

“Vai passar vergonha cata koquinho, vai ser moído no argumento” (YouTube)

Conforme se verifica nas publicações expostas acima, o pertencimento racial de Kataguiri é um marcador importante nas ofensas. A utilização de termos como “japa” e “China”, país que não tem nenhuma relação com o candidato, demonstram como descendentes de asiáticos enfrentam um processo de generalização de suas origens.

A utilização do termo “japa” parece tão corriqueira no vocabulário nacional que nem mesmo se restringe às postagens ofensivas, aparecendo inclusive em comentários que exaltam o candidato:

“Eu falei NUNCA irá debater com o Japinha. E como todo bolsonarista ele é covarde. NEM PETISTAS NEM BOLSONARISTAS ENCARAM O KIM” (YouTube)

“O japa é genial kkk” (YouTube)

Assim, ser um sujeito de origem asiática, no contexto brasileiro, implica uma série de estereótipos, expectativas e preconceitos em termos altamente reducionistas, que não só desconsideram a individualidade desses sujeitos, mas também apagam sua história.

Tal fenômeno se torna ainda mais evidente quando o comparamos com a experiência de ser lido como um sujeito branco. No Brasil, ser classificado como branco significa que esse indivíduo não é facilmente enquadrado em um grupo étnico ou racial. O movimento de enquadramento em grupos raciais ocorre quando estamos diante de grupos historicamente minorizados, é o caso de descendentes de asiáticos, indígenas e pessoas negras. As pessoas brancas são lidas, assim, a partir de um lugar neutro, o que as permitem ser vistas apenas como seres humanos (MOREIRA, 2019, p. 40). Ser lido enquanto ser humano para os grupos historicamente minorizados requer disputa e reconhecimento social de suas demandas, o que no Brasil segue sendo um processo.

Nesse sentido, a branquitude se constrói a partir da invisibilidade, enquanto a posição subalterna de outros grupos, ou seja, os grupos lidos como racializados, é reafirmada exatamente nas diferenças. A utilização da descendência asiática de Kataguiri como forma de ataque traz visibilidade a uma ferramenta discursiva: o olhar branco analisa a presença amarela para mantê-la segregada da identidade padrão hegemônica, ou seja, a identidade branca.

Um segundo ponto que não pode ser ignorado é como marcadores culturais e de raça são operacionalizados em algumas das ofensas proferidas contra Kim Kataguiri. O termo “cata koquinho”, por exemplo, representa uma ofensa de cunho racial que usa uma sonoridade típica de nomes asiáticos para atacar o candidato. O que se observa, portanto, é uma representação cultural derrogatória de símbolos desse grupo minoritário. Esse tipo de discurso pode ser compreendido como uma manifestação de superioridade por parte do agressor, o qual acredita que suas tradições culturais ou suas vivências apresentam uma importância distinta (MOREIRA, 2019).

No caso de Fernando Holiday, grande parte das ofensas também tinham como mote a raça do candidato. Diferente em relação a Kataguiri, as ofensas proferidas contra Holiday parecem se conectar, em sua maioria, com as expectativas que as pessoas têm em relação a ele devido à sua raça, como demonstram alguns dos comentários a seguir:

“@FernandoHoliday Não sei se existe extrema direita ou extrema esquerda mas com certeza existem sujeitos extremamente com falta de caráter igual a você, um branco racista vestido de pele negra sabe-se lá como. Nojento.” (Twitter)

“@FernandoHoliday (...) Você PENSA IGUAL A CASA GRANDE. E SÓ. Eles dormem em paz por sua causa.” (Twitter)

@FernandoHoliday Vc é uma vergonha para os negros brasileiros! Tenho NOJO DE UM CARA COMO VC...(Twitter)

“Mas agora que é para analisar o negro para ele se beneficiar vc não quer Holiday? Vc é uma vergonha como negro!” (Instagram)

“Slcc vergonha alheia ver um negro defendendo o lado de opressor apenas para ganhar vizualizações, acho que ele nunca ouviu o termo reparação histórica né? (…)” (Instagram)

Assim, como é possível observar a partir dos exemplos expostos acima, grande parte das ofensas contra Holiday diziam respeito a sua posição política. Caso tais comentários tivessem sido tecidos de modo a apenas apontar incongruências na postura do candidato, ou criticar sua competência política, o teor das publicações estaria em conformidade com a grande parte do conteúdo dirigido aos outros candidatos (MonitorA, 2020). Todavia, por se tratar de um homem negro, grande parte dos comentários não julgam sua postura individual, mas como ele se comporta enquanto um homem negro. Ao afirmarem que ele seria “um branco racista vestido de pele negra”; “uma vergonha como negro” ou que pensa “igual a casa grande”, as ofensas lançam mão de um vocabulário racista e violento, fazendo inclusive alusões ao período escravocrata para atingir o candidato.

Dessa forma, o posicionamento ideológico de Holiday é operacionalizado articulando-se ao seu pertencimento étnico-racial. Há uma visível dificuldade, por parte dos agressores, de lidar com as opiniões e posições políticas do candidato, e a relevância dessa afirmação está no fato de que eles não atacam Holiday por pensar como pensa, mas sim por ser um homem negro que pensa como pensa. Os marcadores sociais que permeiam a masculinidade do candidato, em especial sua raça, nutrem o teor das ofensas, e apontam para uma tentativa de limitá-lo a uma versão única do que é de como deve ser um representante de seu grupo étnico-racial.

Nessa dinâmica, os candidatos racializados, em oposição aos homens brancos — tratados apenas como homens — são obrigados a lidar com estereótipos e expectativas que não dizem respeito a eles enquanto indivíduos. Isso se manifesta como uma violência não apenas pelo teor racista de grande parte dos comentários, mas também por seu caráter aprisionador.