A política “geral” e a política “identitária”: os discursos mobilizados em torno das candidaturas trans
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil teve 78 candidaturas trans nas eleições de 2022. O MonitorA acompanhou as redes sociais de 11 delas, entre as quais três se elegeram: Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), como deputadas federais, e Linda Brasil (PSOL-SE), como deputada estadual. As candidatas Alexya Salvador (PT-SP), Atena Roveda (PDT-RS), Benny Briolly (PSOL-RJ), Biana Nunes (MDB-AL), Rafaela Esteffans (MDB-AP) e Robeyoncé Lima (PSOL-PE) serão suplentes, enquanto Paula Benett (PSB-DF) e Thabatta Pimenta (PSB-RN) não se elegeram.
Na primeira eleição em que candidatas trans se elegeram a cargos no Legislativo federal, nos debruçamos sobre como as narrativas acerca dessas candidaturas tomaram forma durante a campanha eleitoral. Na investigação de caso sobre as candidatas trans, diferentemente do restante de nosso monitoramento, não nos limitamos às análises de conteúdos ofensivos, mas expandimos para as principais narrativas que se construíam sobre essas candidatas. Para tanto, realizamos uma análise léxica automatizada com o software Iramuteq, que permite gerar gráficos de Análise Fatorial de Correspondência, compostos por nuvens de palavras estatisticamente relevantes. A análise desses debates foi feita nos perfis de Twitter e Instagram das candidatas acima mencionadas.
Observamos que grande parte do debate político que candidatas trans e travestis tentaram travar nas redes sociais durante a campanha eleitoral acabou sequestrado por conflitos ideológico-partidários, violência política, debates sobre segurança pública e disputas sobre representatividade de grupos historicamente minorizados. Pautas relacionadas a questões importantes para as candidatas, portanto, não conseguiam chegar no diálogo político quando se relacionavam a questões lidas como “identitárias”. As interações de usuários com as candidatas reproduzem o cenário de polarização política nacional, sendo a defesa de partidos e candidatos progressistas a principal chave dos ataques às mulheres trans que tentavam cargos no Legislativo. Tal fato fez com que os comentários transfóbicos se tornassem uma camada adicional de violência, opondo-se às mensagens de apoio e acolhimento às candidatas, que representaram parte importante das interações.
Essas dinâmicas tiveram variações significativas a depender da rede social analisada. No Instagram, identificamos cinco grupos de palavras ligados às candidatas, especialmente Hilton e Salabert, e às eleições em geral, que se concentram em manifestações de solidariedade diante das violências sofridas por elas. Expressões como “força”, “se cuida”, “coragem” e “resistência” aparecem bastante para Duda Salabert (PDT-MG), em referência a ameaças de morte de que foi vítima em agosto. Em torno de Erika Hilton, estão expressões de incentivo como “comunidade”, “unir”, “congresso”, “bancada”, “popular”, “vamo”, “simbora”, “bora”. Um grupo mais geral, distribuído entre todas as candidatas analisadas, traz ainda termos como “esperança”, “parabéns”, “incrível”, “maravilhosa”, “emocionante”, “alegria”, “orgulho”.
A presença de interações menos hostis e mais acolhedoras no período analisado pode estar relacionada à própria arquitetura do Instagram, que aparentemente privilegia o contato do usuário com personalidades que admira ou por quem nutre alguma espécie de admiração. Ainda no Instagram, diferentemente de outras plataformas, os administradores das páginas das candidatas contam com ferramentas de exclusão de comentários e/ou não mostrar marcações de cunho violento, além de poderem fixar nas publicações comentários que considerem positivos.
No Twitter, coletamos inicialmente 62 mil tuítes, mas a análise se concentrou nos 6 mil que incluíam termos potencialmente ofensivos. Nessa amostra, as interações hostis com as candidatas trans e travestis se concentraram em três grupos: (i) polarização política e ideológico-partidária; (ii) segurança pública e violência política; e (iii) representatividade, identidade e grupos minorizados.
O primeiro reúne narrativas comuns na campanha presidencial: desafios do próximo governo federal na economia, educação, saúde e corrupção, além de menções a Jair Bolsonaro (PL), Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT). O segundo grupo de termos trata de segurança pública e violência política, discutindo episódios ocorridos fora da internet e a pauta armamentista. No terceiro e último grupo, a narrativa gira em torno de representatividade de grupos socialmente minorizados, reunindo ataques e manifestações de apoio às candidatas. Essa separação indica a existência de grupos fechados a certos debates.
A pesquisa mostrou ainda que os usuários do Twitter apostam no discurso de transfobia para atacar o posicionamento ideológico das candidatas trans e travestis. Para entender o teor dos discursos ofensivos, o MonitorA analisou uma amostra de mil tuítes, selecionados aleatoriamente entre os 6 mil que traziam termos potencialmente ofensivos. Dentre eles, 8,2% (82 tuítes) foram considerados de fato ofensivos. Muitas vezes, as agressões usam a própria linguagem do universo trans desrespeitosamente, sem xingamentos ou ataques diretos. Em alguns casos, a transfobia aparece em chamar travestis de “ele”, ou homens trans de “ela”, ou mais agressivamente em termos como “mal resolvida”, “ser indefinido”, “aberração”, “macho” e “viadinho”.
Depois dos comentários transfóbicos, os insultos, como “hipócrita” e “ridícula”, são a segunda maior categoria de hostilidade (18 tuítes), seguidos por ataques com termos como “imbecil”, “burra” e “jumenta”, que promovem o descrédito intelectual das candidatas (15). Os relacionados à ideologia política (12) empregam termos como “militonta”, “psolenta” e “petista nojenta”. As ofensas misóginas (8) acusam as candidatas de fazerem “mimimi”, entre outros comentários ofensivos.
A análise dos ataques explicita alguns desafios da moderação de conteúdo, como a necessidade de consideração das peculiaridades desse grupo, que inclui como ponto importante o tratamento e identificação desses indivíduos. A utilização de um pronome masculino, por exemplo, não necessariamente será detectada como problemática, mas, no contexto trans, pode representar uma violência importante, da mesma forma que postagens de imagens de pessoas trans antes da transição.
Portanto, o contexto se torna essencial na identificação de ataques de caráter transfóbico, fato que aponta para a necessidade de uma maior sensibilidade e treinamento por parte das ferramentas e indivíduos responsáveis pela moderação de conteúdo, assim como a presença da própria população LGBTQIAPN+ como parte ativa na construção de diretrizes consistentes no combate a esse tipo de violência.